quinta-feira, 17 de junho de 2010

"pára-raio de loucos"

faltava a imagem pra que eu pudesse dizer do ocorrido.

deu-se durante as gravações do filme quimera sobre ópio e pandora. e não é estranho que apenas a partir da impressão gerada pelo encontro do registro do ocorrido com a memória eu poderia tentar traduzir a arte.

do tipo matreira, que as mães desesperadamente tentam convencer-nos a evitar. aquela em que depois de um dia inédito de desafios seu pé o conduz a uma queda perigosa amparada apenas pela dureza de sua testa com a ajuda de um punho firme que se que dou luxado.

tomei muito boa conta de minha situação. o zunido repentino acordou-me pro fato de eu ter despencado no meio das gravações. ali no chão, ao lado da fonte, já de costas com pezinhos pra cima, eu rapidamente tratei de mexer neles os dedões e os mindinhos, conferindo em voz alta para que se fizesse saber às presentes cabeças que circundavam inclinadas: tudo estava bem. continuei com as mãos e braços até que a listagem da avaria chegou inevitável à cabeça, onde eu sentia a bola volumétrica preenchendo minha palma. grande o galo.

constatei também que ele seria de briga. ao tirar a mão para que se inspecionasse a feiúra daquela coisa latente as reações foram diversas... a maioria me escapa, mais poderia ter-me causado maior preocupação e um eventual descontrole observar o horror e a extrema preocupação em duas delas. isso se eu não estivesse sóbrio como estava. era minha a situação.

fiz-me levar para o hospital. levantei com uma breve a válida ajuda que me acompanhou desde então e passou comigo pelo médico, pela injeção de vitamina e soro, acompanhou o choro e o riso, contou e escutou anedotas nas duas horas que se passaram.... e por fim acompanhou-me a pé na volta do hospital. eu estava bem e já digeria o ocorrido, arrisco dizer que com uma sensação de contentamento. só queria estar bem e voltar à fita.

o curativo foi murchando durante a noite, sinal que meu córneo desinchava. antes de dormir tirei-o e vi pela primeira vez o acidentado. ao espelho lembrei-me de seres hipercéfalos. o ângulo formado pelo inchaço com a protuberância óssea da minha sobrancelha formava um aspecto particularmente engraçado, o que não passou despercebido pelas companheiras de quarto.

repassando fatos e ponderando ocorridos fomos os três pra cama dormir, ou ao menos tentar. eu estava a toda e não podia deixar de pensar nos fatos, extrair deles um sentido. pus-me em posição meditativa para acalmar-me e entrei em tal estado com uma rapidez e facilidade raras. daí o que sucedeu é para mim demasiado misterioso para que tente traduzir. mas ao que me parece, conectamo-nos naquele estado de vigília.

no outro dia, num dado momento de breve descanso depois do almoço, numa saleta que ficou conhecida como "a dos livros", deitei no tapete e no colo de uma garota jaca. ela bruxuleava um jogo de magia autoral com os inúmeros livros que a circundava. a consulta oracular baseava-se em relatar àquela um pensamento ou sensação acerca do dia. feito isso ela buscava com acerto displicente um livro iluminador e o abria escolhendo uma passagem quase ao acaso.

minha questão foi a queda e o galo, que apesar de manso cacarejava uma dorzinha de nada. escolhido o livro a mensagem veio incisiva e acertada. ela abriu os poemas de alberto caeiro e leu-me o do dia 07/11/1915:

"Se eu morrer novo,
sem poder publicar livro nenhum
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não tem sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva -
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão -
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e a chuva,
E sentando-me outra vez a porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído."






*o título é uma referência ao livro homônimo do borboleta, que aparece em primeiro plano na imagem, registrada por crônicamente orgânica, a cuja sugestão não pude resistir.

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